Saavedra Valentim

Manifestações da alma

Textos


REMINISCÊNCIAS

   Eu gostaria de iniciar este ensaio citando o lindo poema de Casimiro de Abreu, que retrata, de forma tempestiva, o meu estado de espírito neste momento: “Oh! que saudades que eu tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida, que os anos não trazem mais, que amor, que sonhos, que flores, naquelas tardes fagueiras à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais”.
    Empreendi uma viagem de volta, impulsionado pelas minhas lembranças, na esperança de reviver meus anos dourados, não como protagonista, atuando, evidente, mas vivenciá-los apenas observando a paisagem, que foi o cenário de incontáveis travessuras, de infindáveis preocupações de pais, que, pela vastidão das opções onde brincarmos, dificultava-lhes controlar-nos.  
    Não sei se é a idade que avança a passos largos, ou se é realmente a saudade de uma infância tão bem vivida, tão espetacularmente “gasta” pelas horas que despendia em brincadeiras intermináveis, ao longo de um dia que não findava nunca.
    Hoje, eu acredito que, àquela época, o dia durava mais de 24 horas. Ou, pelo menos, no decorrer de tantos anos, as horas encurtaram-se. A que fenômeno poderia culpar por essa tragédia? Está muito na moda o “El niño”, “El niña”, aquecimento global, ou quem sabe o buraco negro? Não, na verdade, nenhum desses fenômenos causaria uma alteração na duração do dia. Verdadeiramente, quer saber a minha opinião? Tenho uma teoria: a duração do dia é inversamente proporcional à nossa idade. Parece coisa de matemático, ou físico, mas é a pura verdade, podem crer nisso.
    O que me incomoda não é a idade em si, mas as lembranças que ainda estão muito vivas na minha mente, apesar de terem ficado lá trás, perdidas no tempo e que, jamais, poderei revivê-las novamente. Vejo-me claramente, como em um filme a cores, a percorrer despretensiosamente as ruas da minha pequenina Miraí, sem me preocupar com a vida, mal cumprindo com a minha única obrigação, que era estudar; aliás, não tinha consciência de que não era um trabalho, uma obrigação, mas o meu futuro, que dependia daqueles livros chatos, horrorosos, cheios de números, regras, normas, teorias de Arquimedes, Newton, coordenadas cartesianas, etc., histórias de povos que viveram até antes de Cristo, imagina! Estudar latim. Se o próprio professor rotulava a língua de “morta”! E eu pensava, quando iria utilizar-me dessa língua, com quem iria conversar? Penso que havia um dedo da igreja por trás disso tudo, para atrair os jovens para os seus seminários, quase sempre carentes de alunos. Sei lá, é só uma desconfiança.
    Como poderia me interessar por essas coisas, se lá fora o Deus das brincadeiras e da malandragem conspirava a meu favor?  
    Impossível deixar de falar desse professor, um português obtuso, altivo, de cultura invejável, era o astro do colégio. Deus e demônio em nossas vidas, pois a grande dificuldade em aprender suas matérias, como português e latim, e enfrentá-lo nas argüições era temeroso. Seu calcanhar de Aquiles era a avareza. Para economizar o custo da eletricidade, ia para a rua e utilizava a claridade do poste para ler à noite. Esta sovinice lhe custou a família. Foi abandonado. Era impossível conviver com um homem, que, além de mesquinho, não cuidava da sua própria higiene. Seu terno, normalmente escuro e o mesmo de sempre, vivia salpicado pela caspa que lhe caia da cabeça. Era nojento! Às vezes me pergunto: será maluquice de gênio? Não sei, não quero julgá-lo.
    Logo no início, percebi as diferenças que me aguardavam. A estrada entre Muriaé e Miraí, que era pouco mais que um caminho aberto nas matas, a enxadadas, de chão batido, que, nas épocas de chuva, viravam um lamaçal quase intransponível, agora o asfalto a cobre totalmente. Não há mais poeira, lama ou outro impeditivo para as viagens, é o modernismo. Temos que aceitá-lo como uma coisa boa!
    A Maria-fumaça, há muito desativada, era, em muitas estações do ano, a única opção de sair para outras cidades. A estrada de ferro ligava Miraí a Cataguazes de onde se seguia viagem para o Rio de Janeiro, Juiz de Fora, Belo Horizonte, etc.. Mas era romântica uma viagem de trem, ou apenas assistir as suas partidas e chegadas. Meu avô era o chefe da estação, chamado de “Agente”. Minha bisavó contava que, quando da inauguração da estrada de ferro, muitas pessoas se escondiam de medo, quando viam aquela coisa estranha soltando fumaça por todos os lados. Ela, como era portuguesa, já havia conhecido o trem na Europa, razão porque não teve medo do “monstro” de ferro.
    As paisagens, que ainda guardo na lembrança, não existem mais. O campinho de futebol, palco de “famosas” peladas, brigas diárias, diárias reconciliações, virou uma favela, praga que se espalha para todo lado. O rio onde nadávamos, hoje é um depositário de dejetos, de matéria contaminada, onde não é permitido sequer um mergulho, sem o risco de uma séria doença. O lindo pasto, que rodeava a cidade, onde empinava minhas pipas, virou ruas cheias de casas.
    Empreendi uma viagem de volta à minha cidadezinha querida, mas não achei o que procurava, ela, como eu, havia crescido, já não era a mesma.
    As pessoas, já não as conheço. Poucas são as famílias daquela época, que ainda resistem ao tempo e à tentação de se aventurarem por outras bandas.
    Empreendi uma viagem de volta, procurei-me, mas não me encontrei lá. Nem meus amigos estavam lá. Meus pais também não estavam mais lá.  Não encontrei ninguém. As lembranças persistem, mas os fatos ficaram lá, perderam-se nas brumas do tempo, repousam no recôndito do meu âmago, nas profundezas da minha alma. Sonhar é o que me resta.
    Ah! O Clube Miraí, palco de momentos inesquecíveis, por onde passaram grandes orquestras e conjuntos, que animaram memoráveis bailes e inesquecíveis carnavais. Suas paredes foram testemunhas do início e do término de grandes amores. Hoje está ocupado por um banco. O novo Clube não tem o mesmo ar aristocrático, nem a magnificência da arquitetura, ou o esplendor de uma época. Não cria uma simbiose, uma interação entre as pessoas que buscam ali um ambiente de família, de integração.
    Ah! E as paixões. Eram avassaladoras, eternas até nos apaixonarmos de novo. Trocava-se de amor a cada dia. E a timidez? E o medo de nossa eleita não corresponder a esse sentimento tão divino e termos nosso segredo revelado, do que se utilizavam nossos colegas para fazer gozações, que não perdoavam nossas fraquezas e nem respeitavam nossos sentimentos mais profundos.
    Miraí cidade decantada em versos e prosas, assim como eu, já não é a mesma. A tranqüilidade, que a distinguia, perdeu-se com os anos. Hoje há drogas, viciados, roubos, dizem que é coisa do progresso, novos tempos. Houve até um assalto a banco, com morte de um rapaz, que conheci ainda criança. É uma catástrofe!  Mas, ainda assim, continua a ser querida, é o meu berço, onde vi a luz pela primeira vez.
    A casa onde nasci continua lá, linda, restaurada. Sei até o quarto que me recebeu. Não sei como pode ser, mas vejo a cena na minha mente:  as paredes do quarto, o teto, minha mãe se contorcendo com as dores do parto, a parteira, o médico, minha avó... meu primeiro choro. Lá fora a chuva caia com violência. Ainda ouço o barulho de seus pingos no telhado, os trovões e o clarão dos raios através dos vidros da janela. É como se estivesse flutuando e assistindo a tudo. É verdade que a imagem é um pouco turva, mas, ainda assim, vejo nitidamente. Acho que alguém me registrou esses fatos, que me parecem tão verdadeiros, que acredito sentir todas as emoções daquela madrugada. Como pode ser?
    Segundo a minha mãe, houve, naquele dia, uma das maiores enchentes que a cidade já conheceu.  Muitas vezes ela brincava comigo dizendo que ela me achou boiando na correnteza. Achava graça nisso.
    Bem, essas reminiscências hão de perdurar por toda a minha vida, sempre me levando ao passado, à minha infância e adolescência, para me lembrar que fui feliz lá. Poderia utilizar-me da frase famosa do nosso poeta maior, Ataulfo Alves: “eu era feliz e não sabia”.
    Além disso, foi na adolescência que conheci o meu verdadeiro e único amor; cursávamos o ginasial e éramos grandes amigos. Ainda me lembro dela me esperando no portão de sua casa para irmos juntos para o colégio.
    Foi difícil confessar o meu amor para alguém que era tão amiga. Corria o risco de não conseguir namorá-la e perder uma grande amizade. Mas tudo deu muito certo. Tão certo que nos casamos e vivemos felizes até hoje.
    Diria, como nos contos de fadas, e vivemos felizes para sempre!
Saavedra Valentim
Enviado por Saavedra Valentim em 04/04/2008
Alterado em 01/03/2014
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