Saavedra Valentim

Manifestações da alma

Textos


DESEJOS MORTAIS - Capítulo 1

 

   Fora do calendário das festas e comemorações oficiais, Miraí, uma pequena cidade encravada num vale entre as montanhas da zona da mata mineira, oferecia poucas opções de lazer para os jovens, que viviam um cotidiano entediante. A maioria aguardava ansiosa pelas férias escolares, quando a moçada programava jogos de futebol, noites dançantes nos clubes e até mesmo nas próprias casas das famílias. Uns poucos viajavam com os pais para as cidades vizinhas ou mesmo para a capital federal. Outros tantos vinham de outras partes passar as férias no interior, onde residiam seus parentes. Enquanto essa época não chegava, passear no largo da estação até a hora da chegada do trem e assistir às pessoas desembarcarem era uma das formas de amenizar o marasmo do dia a dia.

     Naquela época, na primeira metade do século XX, normalmente, os passageiros eram pessoas da própria comunidade que estavam retornando e alguns caixeiros-viajantes. Estes, na sua maioria, já eram de certa idade, para lá dos 40 e, no geral, casados. De quando em quando, apareciam alguns viajantes jovens e se tornavam o alvo de disputas entre as garotas do lugar, que ousavam flertar com estranhos, desobedecendo às regras rígidas impostas pelos pais, que viam nessas pessoas uma ameaça à dignidade de suas filhas. Assim, esses estrangeiros somente conseguiam namorar algumas garotas mais ousadas que buscavam nesses viajantes uma chance de galgarem alguns degraus na escala social e melhorarem de vida e até mesmo conquistarem a sua libertação para uma vida mais plena de prazeres em cidades maiores, como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo. Após o desembarque dos passageiros, que acontecia lá pelas 19 horas, todos se dirigiam à praça principal, onde ficavam jogando conversa fora até as 22 horas, quando a maioria se recolhia para uma boa noite de sono.

     Nas noites de segunda a sexta, podia se ver a figura de uma bela mulher esguia, pele branca e sedosa, cabelos ruivos, marcada com pequenas sardas, que desciam do nariz e se dispersavam pelo rosto em pintas bem menores, quase imperceptíveis, que tornavam aquele rosto único. Ela se destacava na plataforma da estação, desfilando sua coleção de vestidos e sapatos caros, adornada de joias em ouro, ora cravadas com diamantes, ora com rubis, ou mesmo pequenas pedras de esmeraldas. Alvina, sempre acompanhada de sua amiga Rosalina, aguardava a chegada de seu marido, Galdino, que retornava de sua fazenda localizada em Glória de Cataguases, um dos distritos da cidade de Cataguases, vizinha à Miraí.

     O trem nunca chegava na hora, sempre atrasava. Os atrasos podiam chegar até uma hora, dependendo do despacho de cargas e troca de locomotiva, que acontecia em Recreio, cidade próxima a Miraí. Inesperadamente, sua chegada era antecedida de muitos apitos e a locomotiva envolta em muita fumaça, como um monstro mitológico, surgia da escuridão na curva da chácara de Affonso Alves Pereira, um dos mais importantes industriais e exportadores de café da região.

     Naquela noite, um homem aparentando uns 40 anos, magro, louro, olhos claros, bem vestido, que trazia uma mala de couro e algumas sacolas, se destacava entre os passageiros. Ninguém o esperava. Alvina, ao ver aquele homem de andar desengonçado, sentiu uma sensação estranha, como uma onda de calor a percorrer todo o seu corpo, seguido de um arrepio pela espinha. Custou a disfarçar essa reação de Rosalina, que também fora atraída pela presença daquele estranho, mas não reagiu da mesma forma que a amiga. Ela se virou para Alvina e, sussurrando, fez um comentário sobre o estranho:

     — Alvina? Você notou aquele cara magro e louro, que desembarcou?

     — Quem? Onde? – se fez de desentendida.

     — Acorda, mulher! Aquele homem de terno preto, elegante. Interessante, não acha?

    — Ah, sim! De longe parece bonito, mas ele tem o andar estranho, meio desengonçado, não é? – criticou o que mais a atraiu nele.

   — É verdade, mas nada é perfeito... olhando bem, ele tem um corpo lindo, boa altura... não é de se jogar fora, amiga. Você não acha?

     O interesse de Rosalina e a visão daquele homem que mexeu com as suas emoções, fizeram Alvina voltar a sentir aquela sensação estranha, mas, desta vez, segurou com força o braço de Rosalina, que, percebendo que a amiga agia de maneira estranha, fez um comentário maldoso:

     — Hum! A minha amiga sempre tão segura de si, inabalável no seu amor pelo marido, hoje tremeu nas bases. Não foi? Eta! Que trem de homem bom danado, sô! Só para tentar o juízo da gente!

Alvina reagiu como se tivesse sido atingida na sua dignidade:

    — Vê lá, Rosalina! Não sou dessas, não, uai! Esqueceu que sou uma mulher casada? E honesta! – cruzou os braços e levantou a queixo, mas seus olhos voltaram a percorrer toda a estação em busca do estranho, que lhe causara todo aquele frenesi.

     — Tudo bem. Já não está mais aqui quem falou. Portanto, não precisa ficar emburrada.

   — Melhor assim! Vamos encerrar este assunto.

     Olhando para a saída de todos os vagões de passageiros e, ao mesmo tempo, aproveitando para dar, talvez, uma última olhada naquele homem, sussurrou para a amiga:

     — Onde está Galdino, não o estou vendo. Será que perdeu o trem?

    — Duvido, Alvina. Já viu mineiro perder trem? – e sorriu zombando da amiga.

     — Oi, meu amor! – Galdino apareceu por detrás delas, beijou Alvina no rosto e cumprimentou Rosalina.

  Alvina se virou surpresa e sorriu demonstrando sua alegria de esposa saudosa:

     — Oi, querido, não vi você sair do trem, não.

* * *

   Galdino era um ferrenho aliado dos Pereiras e muito ativo nos anos de política, chegando a eleger-se vereador em dois mandatos. Era 20 anos mais velho que sua mulher, Alvina. Ele tinha ficado viúvo cinco anos antes e não tivera filhos. Era bem-apessoado, esbelto, usava uma barba bem cuidada, que, igualmente ao seu cabelo, já estava grisalha, mas era um homem de muito vigor, acostumado a pegar no batente, sem preguiça e nem apresentava os desgastes naturais da idade e beirava os 50. Alvina era a caçula dentre sete irmãos, uma família bastante grande e perdera o pai muito cedo. Sua mãe fora valente e conseguiu com muito trabalho e dedicação educar a filha e mais dois filhos, os únicos que quiseram estudar.

     Alvina sempre sentiu atração por homens mais velhos, talvez buscando em cada um o pai que lhe fora tirado ainda muito cedo. A figura de um homem maduro lhe trazia uma sensação de segurança e de estabilidade, que não enxergava nos rapazes da sua idade. Quando conheceu Galdino ela se rendeu imediatamente ao seu charme. No espaço de um ano, noivaram e se casaram. Aos 28 anos já era mãe de dois filhos, de quatro e dois anos. Ele lhe dera uma vida confortável, com uma boa casa, babá e empregada, deixando-a livre para cuidar de sua aparência. Ele gostava de vê-la bonita, cheirosa e bem vestida. Cedeu até aos seus apelos e mudou-se de Glória para Miraí. Mas estranhamente ela não se sentia feliz. Ele era um homem amável, carinhoso, mas que gostava de viver uma vida pacata, sem agitação e ela se ressentia de uma vida social mais participativa. Eram convidados para muitas festas e comemorações, mas em raras ocasiões o casal era visto em alguma delas. Com o tempo, o encanto foi desaparecendo e os momentos íntimos, por que tanto ela ansiava e aguardava com grande expectativa, vinham se tornando um grande sacrifício. Já não sentia mais a mesma atração física por Galdino, mas ia levando a vida sem demonstrar indiferença por ele, dando-lhe carinho e atenção e vinha mantendo a sua fidelidade ao pai de seus filhos, que eram a razão de sua vida.

     Sua mãe havia falecido e, com a ajuda do marido, pôde adquirir as partes dos irmãos na herança do sítio, onde ia pouco, apenas uma ou duas vezes por semana. Mantinha ali algumas dezenas de gado de corte e, de quando em quando pegava a sua charrete e ia até lá matar a saudade de sua infância e juventude. Não era raro vê-la passar pela praça da matriz conduzindo sua charrete confortável, adaptada para lhe oferecer conforto, e sair sozinha estrada afora até suas terras e passar lá parte do dia, retornando antes do anoitecer. Seu marido não colocava qualquer objeção a essas saídas de Alvina. Ela costumava se abrir com a sua amiga e confidente Rosalina sobre as suas frustrações no casamento, mas sempre fazia questão de frisar que nunca lhe passara pela cabeça traí-lo. Isto estava fora de questão.

* * *

     Numa tarde, em uma sexta-feira quente, Alvina se empetecou toda e saiu para ir à cabeleireira dar um corte no cabelo e fazer um penteado novo. Quando dobrou a esquina da Rua Lacerda Werneck, quase se chocou com um homem, que estava muito apressado. Ele lhe pediu desculpas, olhou-a por alguns minutos, tirou o chapéu, cumprimentou-a com um sorriso e continuou a caminhar. Então, nesse exato momento, ela pode perceber, pelo seu andar desengonçado, que ele era o homem que vira na estação dias atrás. Sentiu um frenesi que a deixou sem ar e suspirando pensou: — Ora, ele ainda está por aqui. Meu Deus, de perto ele é muito mais atraente e bonito. Também, a primeira vez que o vi já era noitinha e só pude notar a sua silhueta, que já indicava se tratar de um homem muito atraente. Mas, vendo ele assim tão de perto... ufa, é um Adônis, ou um Apolo, sei lá!

  O incidente lhe causara um efeito devastador e, desde então, a figura daquele homem vinha se tornando uma presença constante em seus pensamentos e recordar esse fato despertava-lhe muito prazer. Entretanto, o incidente que introduzira aquele homem em sua mente a preocupava de certa forma, pois havia um temor de que ele caminhasse desengonçadamente, mas rapidamente até o seu coração e se apossasse dele, instalando-se ali definitivamente. Ela tinha de conter esse ímpeto juvenil. Era casada e não podia alimentar qualquer esperança e era sua obrigação sufocar esse sentimento ainda no nascedouro. Não podia deixá-lo evoluir para algo mais sério que pudesse desestabilizar a sua vida e, muito menos, o seu casamento. Tinha de ter cuidado com essas armadilhas sentimentais, que já causara a desgraça de muitas famílias. Às vezes, se questionava sobre o que vinha acontecendo com ela. Como podia pensar em outro homem com desejos carnais, se ainda amava, ou pensava amar, o marido? Não sabia explicar. Condenava-se e julgava-se: — É muito leviano da minha parte. Isso não pode acontecer e não vai acontecer.

     Embora estivesse se culpando por sentir atração por outro homem que não fosse o seu marido, havia algo que a impelia a tentar descobrir alguma coisa sobre o estranho desengonçado e, quando chegou ao salão, comentou o ocorrido com as outras mulheres e, finalmente, obteve algumas pistas sobre o estranho que lhe causara aquelas emoções,

     O homem desengonçado, tinha vindo a Miraí para montar uma firma de representação de tecidos, rendas e bordados, produtos fabricados pelas melhores indústrias do país. Tinha avaliado o potencial da região e visto que ali corria muito dinheiro, por ser um polo industrial, cafeeiro, grande produtor de leite e carne bovina.

    O senhor estranho, que Alvina vira semanas antes na estação, era, na verdade, um empreendedor e as suas inúmeras viagens à Miraí fizeram com que ela o visse constantemente, ora desembarcando do trem, ora caminhando pelas ruas, quando buscava um bom ponto para alugar. Ela especulou, despretensiosamente, sem demonstrar qualquer interesse no jovem senhor e descobriu que seu nome era Rômulo e solteiro aos 40 anos. A figura que povoava os seus sonhos agora já não era mais um ser desconhecido, deixara de ser apenas um fantasma, mas alguém cujo nome vinha à sua mente repetidamente. Parecia que o destino conspirava e ele alugou uma casa na rua João Rezende, bem em frente à casa de Alvina, que seria sua moradia e seu escritório. Há alguns dias os dois vinham flertando e, numa primeira vez, ela ganhou um sorriso alegre, depois foi a sua vez de retribuir com um tímido cumprimento e ainda um rápido aceno de mão.

     A varanda se tornara o lugar favorito de Alvina e até tinha deixado de ir à estação todos os dias aguardar o marido, como fazia há anos. Galdino vinha sentindo algo estranho nela. Não sabia bem o quê, mas se colocou em alerta. Sua indiferença, seu cansaço repentino quando requisitada para satisfazê-lo sexualmente, tudo isto fazia aumentar a sua desconfiança. Chegou a admitir uma mulher, que disse à Alvina ter contratado para ser a sua governanta. Ela se perguntou, "mais uma empregada? Será que ele me acha incompetente para administrar a minha própria casa?" Galdino notou que sua mulher ficara meio desconfiada e então lhe explicou que Marinalva era uma mulher instruída, que poderia ajudar nas lições das crianças, deixando-a mais livre para se dedicar somente a ele. Depois disso, ela não mais o questionou, aceitou de bom grado ter alguém para a tarefa de ajudar os filhos nos l

deveres de casa. Ela não tinha muita paciência para ensinar e se estressava muito. A função principal de Marinalva era vigiar Alvina e contar ao Galdino tudo que suscitasse alguma desconfiança. Mas, segundo os relatos de “seu detetive”, nada fora do comum vinha acontecendo. Ela nem mais vinha saindo de casa e ficava quase o dia inteiro na varanda – é até justificável, tem estado quente! – pensou Galdino, apesar de ser outono.

 

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Música de fundo: Moolight Sonata n° 14,  1° movimento;

Compositor : Ludwig Van Beethoven.

Artista: Desconhecido.

Ilustração: Vectecsy

Saavedra Valentim
Enviado por Saavedra Valentim em 18/10/2023
Alterado em 30/10/2023
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